Dalmo Oliveira*
O jornalismo é um campo da cidadania e da indústria onde, eventualmente, um jogo de interesses externos se manifesta ciclicamente. A decisão da juíza paulista Carla Abrantkoski Rister que quebra a reserva de mercado para quem tem um diploma universitário e se tornou, como eu, um bacharel em comunicação social, é mais um episódio típico da tentativa de golpe, batizada por Pierre Bourdieu em seu livro Sobre a Televisão, como a "lógica do Cavalo de Tróia".
Consiste, mais ou menos, em enxertar inimigos na linha de lá da fortaleza. Bourdie pode explicar melhor: "(...) introduzindo nos universos autônomos produtores heterônomos que, com o apoio das forças externas, receberão uma consagração que não podem receber de seus pares".
O jornalismo transformou-se nesses dois últimos séculos uma atividade institucionalmente reconhecida, um campo do conhecimento humano que conquistou o direito de autonomia enquanto práxis sociabilizante e de utilidade pública, como o Direito, a Medicina e as Engenharias. Como modalidade privilegiada de discurso, do ponto de vista do reconhecimento social, o jornalismo também é o espaço em que o saber e o poder se articulam e se autopromovem. Na concepção de outro francês, Michel Foucault, a disputa pela construção de enunciados no campo jornalístico se dá, principalmente, por acontecer neste campo a configuração dos discursos, onde legitimamente se veiculam os saberes institucionalizados, o locus onde se gesta o poder na sociedade.
A desregulamentação da profissão significa assim uma espécie de "abertura de mercado" para que o "jogo enunciativo" possa ter novos apostadores. O papel da justiça nesse episódio é semelhante ao do gerente de apostas dos cassinos de Las Vegas. O problema é que aqui o provável perdedor será mais uma vez a comunidade, porque se o jogo de enunciados se tornou mais disputado é porque cresceu o interesse de outros atores sociais em manipular a informação jornalística.
Não que os jornalistas-bacharéis a manipulem mais eticamente que os jornalistas de ocasião. O que deve despertar mais cuidado em toda essa guerra é o fato de que a quebra da exigência de diploma universitário para o exercício da profissão foi calcada inicialmente na argumentação de que a obrigatoriedade do registro profissional atentava contra a garantia constitucional da livre expressão das idéias, ou melhor, da famosa "liberdade de imprensa". É preciso destacar que a grande maioria daqueles que serão beneficiados com a quebra do registro profissional para jornalistas é composta justamente por aqueles notórios profissionais que usam o jornalismo para divulgar opiniões, pontos-de-vista. Todos sabemos que essa é a modalidade do jornalismo que mais influencia a chamada "opinião pública". É nesse sub-campo do jornalismo onde o jogo é jogado. Mas é aqui também onde estão concentrados os jornalistas mais consagrados. É no jornalismo opinativo onde o cidadão adquire reconhecimento social e consagração entre seus pares.
Não se está quebrando a regulamentação dessa profissão para que um economista famoso vá produzir uma brilhante reportagem investigativa sobre a corrupção no processo de importação brasileiro. Ou para um respeitado biólogo apurar e publicar numa série de reportagens sobre a relação imoral entre a pesquisa pública nacional e as multinacionais da biotecnologia. Nenhum desses jornalistas de ocasião quer, de fato, exercer o jornalismo na concepção estrita de reportar os fatos. O que os campos de interesse heterônomos desejam, de verdade, é tão somente obter a concessão de opinar sobre fatos escolhidos, massificar opiniões da tendência que representa e ganhar prestígio entre o grupo ao qual assumiu compromissos, ungidos pela áurea de neutralidade imputada ao fazer jornalístico.
Por outro lado, uma defesa intransigente do diploma superior para o exercício jornalístico só pode ser justificada se o campo universitário, onde o jornalismo moderno brasileiro vem sendo pré-gestado, conseguir provar por A mais B, que a formação na graduação é o único espaço para a capacitação de profissionais-cidadãos, com um compromisso claro, uma espécie de juramento sobre qual deve ser o papel de um verdadeiro comunicador social: o contador de histórias cotidianas por obrigação de ofício, o repórter comunitário. Daquele profissional que, investido de metodologias e técnicas desenvolvidas ao longo da história de construção do modelo de enunciação jornalística, produz sua comunicação a partir da necessidade de informações demandada pela comunidade e não por grupos de interesses específicos.
O privilégio de ganhar a vida vendendo "verdades" não foi dado impunemente ao newspaper man. O jornalista paga caro por esse cinismo de ares científicos. A lógica do cavalo-de-tróia é uma espécie de pirataria do privilégio: Oba! Vamos invadir a praia da comunicação, afinal, no início do século 21, informação anda colada à consagração, à inclusão e ao prestígio social. Mais agora que, potencialmente, cada ser humano pode produzir e distribuir suas idéias, fazer sua comunicação, turbinado pelas infovias.
A quebra da reserva de mercado para os jornalistas-bacharéis beneficia diretamente a Indústria Cultural do negócio Jornalismo, porque com jornalistas menos críticos e menos preparados fica mais fácil adequar o produto notícia para um consumo também cada vez menos crítico e, portanto, menos exigente. O campo econômico exerce seu controle sobre os operadores de cultura, como faz com qualquer outra categoria produtora.
Por isso a lógica do cavalo-tróia tenta confundir a percepção da sociedade, chamando esse processo de "democratização". Pareceria mesmo um processo democrático se não fosse por uma via tão fascista: um decreto expedito por outro notório grupo de privilegiados, os juizes.
Lembro da argumentação da juíza paulista, que entre outras coisas justificava a decisão alegando que para exercer o jornalismo, o cidadão necessita apenas de uma vasta bagagem cultural para contar sua versão de mundo.
Ora, seria como dizer que para ser juiz, promotor público, advogado, bacharel em Direito, o camarada só precisaria ter como pré-requisitos um vasto conhecimento das legislações, um alto senso de responsabilidade e justiça e talvez alguém da família trabalhando na desembargadoria. Sob essa lógica, talvez pudéssemos desregulamentar, por fim, todas as profissões, e quem sabe não estaria também mesmo na hora de desmobilizar todo o aparato estatal, a começar pelo judicial, com seus fantásticos orçamentos e suntuosos tribunais.
Aí refundaríamos o antigo espírito do laissez-faire, numa versão pós-industrial, onde a competitividade seria a mola do laço social. O mercado se tornaria (como sempre foi) terra-de-ninguém. Um El Dourado de oportunidades ilimitadas. Essa é a lógica neo-liberal por detrás desse tipo de reengenharia social. Alterando o time dos enunciadores bacharéis legitimados pelo campo do saber (a academia); arejando a área com a inserção de enunciadores de ocasião, os interesses atrás da decisão da justiça na abolição do monopólio profissional dos jornalistas-bacharéis exercem o controle necessário na elaboração dos conteúdos que compõem os enunciados.
É o que já ocorre hoje nos Estados Unidos, um país que se institucionalizou como "Norte" da civilização ocidental. Norte no sentido geográfico e no sentido de direção para o modo de vida social, já que aponta soluções para os demais componentes do mundo globalizado. Pois "o que era velho no norte, se torna novo no sul", lembra o antenadíssimo Fred Zero Quatro. Estamos falando da globalização da gestão de controle social, pelo manejo da mídia e de outros campos da cultura humana.
* Dalmo Oliveira é bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba e especialista em Gestão da Informação, pela Universidade Federal de Juiz de Fora.