Perseguição "Liberal"
*Lúcio Flávio Pinto
Em 12 de outubro de 1936, Miguel de Unamuno tinha 72 anos de idade. Era o mais importante intelectual espanhol vivo. Já havia legado a seu país e à humanidade uma obra rica e vasta. Livros que escreveu, como Sentido Trágico da Vida e Vida de Dom Quixote e Sancho, podem ser lidos em qualquer época e por qualquer pessoa com proveito imenso. Jovial e bem humorado, Unamuno não aparentava sua idade. Não ostentava também sua sólida erudição. Sua vasta cultura, porém, legitimava a posição que assumira na sociedade européia e o cargo que então ocupava. Era reitor da Universidade de Salamanca, uma das mais antigas do mundo, fundada no século XIII, referência internacional em sua cidade-sede, que remonta ao século III antes de Cristo, como produto do império romano.
O salão da honra da Universidade de Salamanca servia de palco, naquele 12 de outubro, ao Festival da Raça. O franquismo emergente, ainda em guerra brutal com o republicanismo revolucionário, dera relevância ainda maior à data. Ela serviria de exaltação ao culto da Espanha unificada sob o tacão do ditador. Foi esse o tom dado em seu discurso pelo general Milán Astray, representante de Franco na solenidade.
Numa oração tipicamente fascista, ele lançava palavras de ordens aos falangistas espanhóis, que respondiam em coro na platéia. O fascismo de Franco iria extirpar do organismo nacional o câncer que nele se achava incrustado pelas pretensões autonomistas de bascos e catalães, que consideravam a Espanha uma camisa de força. Ambos os pretendidos países seriam extirpados cirurgicamente pelo poder central unificador, gritou o general. Viva la muerte, respondeu um falangista de camisa azul no meio da platéia. Seguiram-se outros gritos e a típica - e triste - saudação com o braço erguido, reto, diante do enorme retrato de Franco.
Findo o discurso do militar, todos os olhares se voltaram para o até aquele momento impassível Unamuno. Ele dirigia uma universidade que estava na parte da Espanha dominada pelos nacionalistas. De forma discreta, lhes tinha sido simpático, enquanto a maioria dos outros intelectuais seguia os republicanos (embora muitos deles, em seguida, tenham abjurado essa posição, voltando aos braços de Franco ou exilando-se). Mas era de domínio público o profundo humanismo de Unamuno, sua coragem de dizer o que pensava.
O filósofo começou por lembrar sua condição de basco, originário de Bilbao. Depois, olhando para o pálido vizinho de mesa, disse que o bispo ao seu lado era catalão de Barcelona, embora talvez não quisesse declinar naquela ocasião sua naturalidade. Tinham sido ofendidos, os dois, pelo discurso bilioso de Astray em relação às pretensões de nacionalidade das outras duas pátrias nas quais a Espanha, de fato, se dividia (e se divide até hoje).
Mas essa descortesia não ia ser o tema central do seu discurso. Ele estava perplexo diante do paradoxo contido no discurso do general. Unamuno se considerava preparadíssimo para enfrentar qualquer paradoxo. Este era o objetivo do seu empenho intelectual de muitas décadas: dar forma a paradoxos, ainda que provocando a incompreensão de muitos. Apesar disso, ele não via qualquer sentido no paradoxo de exaltar a morte, como se fizera naquela solenidade. A exaltação à morte, como forma de construir uma Espanha unida, demonstrava o aleijão dos que propunham esse lema.
O general Astray e os seus seguidores eram aleijados de guerra, afirmou o grande filósofo. Voltando-se serenamente para o irado militar, pediu-lhe que não desse à expressão que acabava de pronunciar "nenhuma intenção depreciativa". Assim o definia por ser ele inválido de guerra. Mas Cervantes, patrimônio da humanidade, também havia sido um inválido de guerra. Só que Cervantes possuía grandeza espiritual. Os inválidos com os quais dividia o ambiente naquele 12 de outubro, acrescentou Unamuno, enérgico e tranqüilo, por não terem essa mesma grandeza, procuravam alívio para sua invalidez causando mutilações em torno de si.
O silêncio que Unamuno estabelecera com suas palavras foi quebrado por um grito vindo do fundo do salão:
- Viva a morte - tonitroou um falangista.
- Viva a inteligência - respondeu Unamuno.
O reitor da legendária Salamanca pronunciou, então, uma das mais belas orações inscritas na tradição do humanismo em todos os tempos:
"Este é o templo da inteligência. E eu sou o seu sacerdote mais alto. Sois vós que profanais este sagrado recinto. Ganhareis, porque possuis mais do que a força bruta necessária. Mas não convencereis. Porque para convencer é necessário persuadir. E para persuadir é necessário possuir o que vos falta: razão e direito em vossa luta. Considero inútil exortar-vos a pensar na Espanha. Tenho dito".
Quando o reitor se sentou, o silêncio era pesado no salão em estilo gótico. O ar estava carregado de emoções: medo, admiração, pânico, respeito, ódio, amor. Ninguém sabia como retomar a vida depois daquele discurso emocionado, profundo, perturbador. Seria a última manifestação pública de independência na parte da Espanha que já se achava sob o domínio dos nacionalistas.
Um dos integrantes da mesa oficial, um professor de direito canônico, se levantou e tocou num dos braços de Unamuno. Ainda dominado pela emoção, o filósofo se ergueu. Foi amparado, do outro lado, pela esposa de ninguém menos do que o próprio Franco. E, assim, foi conduzido para fora do salão. A força bruta ia vencer.
Unamuno voltou para sua casa e de lá nunca mais saiu. Foi mantido em prisão domiciliar, já que o franquismo temeu a repercussão internacional que sua execução provocaria. O grande Miguel de Unamuno, orgulho eterno dos espanhóis e dos terráqueos, morreu de pura inanição dois meses e meio depois, exatamente em 31 de dezembro de 1936. A causa mortis: dor moral.
Juro que esse episódio me passou meteoricamente pela mente no dia 21 de janeiro. Enquanto contemplava Ronaldo Maiorana, 19 anos mais novo do que eu, a gritar impropérios e me ameaçar de morte, seguidas vezes, no restaurante do Parque da Residência, a caprichosa memória foi buscar a sensação que tive quando, 40 anos antes, no dia 10 de dezembro de 1964, terminei de ler a última das 771 páginas de A Guerra Civil Espanhola, anotando a data no próprio livro, como então era meu hábito (infelizmente abandonado depois).
O jornalista e historiador inglês Hugh Thomas escreveu esse livro, na sua língua, em 1961. Hélio Pólvora e James Amado traduziram a obra para o português e a Editora Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro, a publicou três anos depois, em dois grossos volumes. O fantástico Eugênio Hirsch, que deu um rosto definido e bonito às publicações da editora de Ênio Silveira, neste trabalho, especificamente, foi infeliz. As letras desenhadas dificultavam a leitura da capa e a identificação do tema do livro, que encalhou (uma injustiça que se renovaria em 1979, no cinqüentenário da revolução espanhola, quando o livro foi criticado por alguns intelectuais brasileiros como se fosse obra menor).
Comprei (na saudosa Livraria Martins, da Campos Sales, nosso ponto de encontro na época) e o li em três dias seguidos, sem interrupção, isolado do mundo, como fazia então, antes de entrar numa redação de jornal e começar a tentar laçar o mundo sem ser vaqueiro do universo e contando apenas com as duas mãos do poema de Carlos Drummond de Andrade (e o mesmo sentimento do mundo).
Quando assinalei a data da conclusão da leitura, estava meio febril, em estado de choque, aniquilado e deslumbrado. Eu já havia lido algumas coisas sobre a revolução e a guerra civil espanhola, mas nada tão completo e tão vívido quanto a obra de Hugh Thomas me proporcionou. Aos 15 anos, a revolução, a contra-revolução e a completa tragédia que ensangüentou a Espanha dos anos 30 do século passado estavam impressas em fogo dentro de mim.
Eu já havia recebido o abalo da descrição da morte de Federico García Lorca, o poeta que me transportava em baladas lânguidas para a lua gitana, na solidão ou durante as tertúlias no salão privé da poeta Anna Maria Barbosa Rodrigues, minha vizinha e terna amiga da república do Largo da Trindade. Mas seria ainda maior, naquele tempo já longínquo, o impacto da narrativa de Thomas sobre a sessão tetricamente festiva de Salamanca e o discurso de Unamuno. Foi através de Unamuno que penetrei no universo mágico do Miguel ainda mais célebre, o Cervantes de Saavedra, com as chaves da cultura hispânica (ou peninsular).
No ano seguinte, 1965, Ferreira Gullar e Millôr Fernandes aproveitaram o episódio como um dos momentos mais emocionantes de Liberdade, Liberdade, histórico espetáculo teatral no qual as colagens serviram de meio eficaz para narrar a história da luta de certos homens contra as tiranias, o absolutismo, a prepotência e a força bruta de outros homens. Fui um dos enfeitiçados espectadores da peça em vários dias de comparecimento ao Teatro Opinião, na rua Siqueira Campos, no Rio de Janeiro, onde morei durante certo tempo. A chama do meu compromisso com a verdade se acendeu, feerica, sob a inspiração da altivez, da lucidez e da coragem de Unamuno diante da horda bárbara de Astray & Companhia.
Uma impressão tão definitiva que me veio à memória enquanto eu próprio era personagem involuntário de lance semelhante, ainda que infinitamente menor. Eu havia sido agredido pelas costas. Recebera um murro (tapa, na versão do agressor), uma gravata, empurrões e chutes. Arrastara, ao cair, talheres, pratos, cadeiras e companheiros de mesa, membros de uma fraternidade fiel à etimologia, de alegres irmãos da confraria dos almoços de sextas-feiras, do "senadinho" talvez mais conhecido da cidade.
Quando finalmente consegui me levantar, tendo ao lado um sargento da Polícia Militar, fazendo as vezes de capanga do agressor, quando devia estar no quartel ou pelas ruas, a proteger a população, que lhe paga (e continua a pagar) o soldo, olhei para quem me havia agredido pelas costas de forma tão bárbara, selvagem e covarde.
Anos antes, esse agressor me havia cumprimentado e dado um abraço. Foi durante o velório de Cláudio Augusto de Sá Leal, o mais importante diretor de redação que o jornal O Liberal já teve em sua história. Partilhei a mesma redação com Leal durante 20 anos, com algumas interrupções no período. No curso de 14 anos essa convivência foi em O Liberal. Não uma convivência pacífica: discutíamos muito, brigávamos e, afinal, rompemos, interna e externamente. Sempre nos respeitamos, porém. Admirávamos um ao outro, inclusive na divergência, em algumas situações aberta e totalmente.
Reencontramo-nos depois de algum tempo de completo distanciamento. Foi uma reaproximação tensa e difícil. Possibiltou poucos momentos em comum, mais fugazes do que devíamos nos ter permitido. Ele ficou gravemente doente e morreu, depois de bastante sofrimento. Eu queria vê-lo pela última vez. Havia 35 anos que nos conhecíamos. Ele me abriu as portas do jornalismo. Fui seu "foca" e, depois, companheiro. Dividimos muitas horas de conversa a dois, profissional e pessoal. Foi meu grande amigo e um dos mais importantes jornalistas que o Pará já teve. Tinha, portanto, que comparecer ao seu velório, mesmo que tivesse que enfrentar os olhares atravessados ou qualquer descortesia dos donos de O Liberal.
Fui, prestei minha homenagem ao morto ilustre e permaneci no necrotério até o fim das exéquias. Havia tensão no ar. Temia-se uma fagulha no rastilho de pólvora. Eu era (e sou) persona non grata aos Maiorana, proibido de ser citado em seus veículos de comunicação, para eles um morto virtual, pelo crime de não me submeter aos seus caprichos, vontades e interesses.
O rastilho parecia que seria aceso quando Ronaldo Maiorana se aproximou de mim. Mas ele me cumprimentou e nos abraçamos, irmanados pela dor da perda de Cláudio Leal. A tensão se aliviou e o ato fúnebre teve seu curso normal. Cada um continuou seu caminho pela vida, sem novo momento de aproximação. A empresa continuou no exercício arbitrário e desmedido do seu poder e eu, a zelar pela prestação de informações à opinião pública.
Por que então aquela agressão de 21 de janeiro? Por que aquela brutalidade toda? Por que a ira e o ódio naquela agressão torpe, reduzindo o ser humano a uma condição animal, irracional?
O motivo era um trecho da última edição do Jornal Pessoal, o número 337, da 1ª quinzena de janeiro. É o que o próprio Ronaldo Maiorana alega, na queixa-crime que ajuizou contra mim, quase um mês depois, em 17 de fevereiro, perante a 16ª vara criminal. Alega que eu cometi "severas ofensas à honra e memória" do pai, Romulo Maiorana, ao escrever o seguinte "rosário de impropérios", reproduzido na petição inicial com erros, que aqui corrijo:
"Na época, RM não pôde proclamar a vitória. Havia um veto não assumido dos militares dominantes ao seu nome. Associavam-no a uma das expressões dos maus hábitos políticos locais, de mãos dadas com negócios escusos, que atraía o furor moralista do regime estabelecido em 1964: o contrabando. Romulo tinha ligação com esse mundo por duas vertentes: o próprio contrabando e o pessedismo...".
A queixa-crime interrompe a citação nesse ponto, embora, no texto original, nem haja ponto nesse trecho. A citação termina numa vírgula. Logo, quebra o raciocínio da frase, secciona o seu significado, lesiona o sentido da oração. Por que essa castração?
Porque não interessava ao autor da ação, para efeito de sua montagem sobre o suposto delito de difamação que eu teria cometido contra a memória do fundador das Organizações Romulo Maiorana, reproduzir o restante do artigo. Sequer o que faltava para chegar ao fim do trecho citado. Mas para a formação do juízo do leitor, faço-o eu.
O trecho omitido é o seguinte:
"... pessedismo, centrado num homem pessoalmente honesto, Magalhães Barata, o maior político do Estado, cercado de corruptos por todos os lados. Déa, viúva de Romulo, é sobrinha de Barata".
Esse trecho final omitido revela as qualidades do jornalismo que exerço, com isenção de ânimo, discernimento, capaz de separar aspectos positivos e negativos de um tema, de reconhecer os méritos alheios, mesmo das pessoas que critico. Nesse trecho final escrevi que o general Magalhães Barata, tio da mãe de Ronaldo, apesar de cercado de corruptos por todos os lados, era um homem "pessoalmente honesto". E, apesar de seus erros, foi "o maior líder político do Estado".
Quem assim se expressa, mesmo quando diz palavras duras e emite juízos rigorosos, não age por ânimo ofensivo. Pelo contrário: está realizando a missão mais nobre de um jornalista, que é informar a opinião pública sobre a verdade dos fatos. A verdade, sendo objetiva, não ofende a ninguém. Sendo sobre o passado, é história. E, como história, deve ser contada, apesar do ímpeto censorial, repressor e intimidatório de cidadãos que não convivem bem com a verdade. Como o general Milán Astray. Como Ronaldo Maiorana.
Assim como distingui a honestidade pessoal e o saldo positivo na carreira de homem público de um personagem tão polêmico como Magalhães Barata, sem esconder suas falhas nem sonegar suas virtudes, fui capaz de ressaltar a figura de Romulo Maiorana, a despeito de pontos criticáveis de sua atuação. Afinal, criticáveis todos nós somos. Nem por isso podemos, devemos ou queremos sair atrás do crítico para aplicar-lhe tabefes e pescoções.
No parágrafo seguinte do artigo que provocou em Ronaldo fúria semelhante à dos falangiários franquistas de 1936, diante do soberbo discurso de Unamuno, escrevi que, uma vez retomado o controle de sua emissora de televisão, com o registro legal da firma em seu nome, superando, portanto, o veto dos militares, Romulo Maiorana "foi se distanciando dos concorrentes, perdendo-os de vista graças ao seu modo muito peculiar - e muito eficaz - de administrar seus negócios, sempre neles reinvestindo, ainda que pelo primado da imobilização em ativo fixo, com poucas sobras para a qualificação de pessoal".
E mais, em seguida:
"Quando morreu, 18 anos atrás, [Romulo] deixou aos herdeiros uma empresa que liderava em todos os segmentos do mercado, com vantagem sem igual na história das comunicações no Pará, azeitada e com muitas reservas em caixa, além de planos de expansão em pleno andamento, como era sua característica: o crescimento em moto contínuo, sem descanso. A doença fatal, embora cruel, deu-lhe tempo para encaminhar a sucessão".
Estas são expressões que caracterizem ânimo ofensivo, a intenção de denegrir, o propósito de enxovalhar a honra alheia?
Lei de Imprensa
No parágrafo que, segundo a queixa-crime, com base na Lei de Imprensa, provocou a ira punitiva de Ronaldo Maiorana (não citado uma única vez no artigo, nem referido indiretamente), escrevi, objetivamente: na época em que recebeu a concessão de um canal de televisão em Belém, durante o regime de exceção instaurado a partir de 31 de março de 1964, Romulo Maiorana não pôde comemorar essa vitória. E não pôde porque "havia um veto não assumido dos militares dominantes ao seu nome. Associavam-no a uma das expressões dos maus hábitos políticos locais, de mãos dadas com negócios escusos, que atraía o furor moralista do regime estabelecido em 1964: o contrabando. Romulo tinha ligações com esse mundo por duas vertentes: o próprio contrabando e o pessedismo".
Nesse trecho do artigo está dito que o veto dos militares à concessão do canal de televisão, que é bem de propriedade pública, diretamente a Romulo Maiorana, devia-se a que esses militares o associavam ao contrabando, um dos alvos principais do "furor moralista do regime estabelecido em 1964".
Não há, na frase, juízo de valor algum por parte do autor do texto. Há, sim, a exposição de duas posições. A dos militares, por "furor moralista", proibindo que a concessão do canal de televisão saísse em nome de Romulo Maiorana, porque seu nome, nos arquivos dos órgãos de informação do regime, estava associado ao contrabando. E a posição do próprio Romulo Maiorana, que, não querendo ou não podendo se insurgir contra esse veto, transferiu a concessão para os nomes de quatro empregados, que apareciam, para todos os efeitos legais, como donos da TV Liberal. Uma vez suspenso o veto, esses empregados, imediatamente, exceto um, devolveram os poderes que o patrão lhes havia transferido. O outro só seguiu a iniciativa depois de um acerto à parte.
O artigo não se propôs examinar se Romulo Maiorana era ou não contrabandista: depois das poucas linhas a ele dedicadas (constituem três parágrafos, dos quais apenas um citado na queixa-crime, enquanto o artigo todo contém 32 parágrafos), o assunto se esgotou, não sendo mais tratado pela matéria jornalístico. O propósito dessa pequena parte do extenso artigo era explicar porque a TV Liberal, notoriamente de propriedade de Romulo Maiorana, não fora oficializada em nome dele, como seria de se esperar, já que era dele o investimento na montagem da emissora.
Daí as ressalvas de expressões, como "associavam-no" e veto por "furor moralista", para explicar o recurso ao artifício do "contrato de gaveta" com os quatro funcionários, em nome dos quais a emissora de televisão foi registrada. A ligação de Romulo Maiorana ao contrabando é um elemento acessório. Um fato, mas lateral no conjunto da narrativa. Mesmo que fosse central, não a tornava delituosa, por se tratar de narrativa, destituída de qualquer ânimo, apenas informativa.
Nada havia no texto a justificar um entendimento passional, como o que Ronaldo tenta fundamentar em sua queixa. Menos ainda uma agressão, intolerável entre seres humanos, ainda mais porque o diretor do grupo Libera, por ser um homem público, devia saber como se comportar na vida pública.
No artigo há fatos, tão-somente. Simples e fácil seria ao suposto ofendido desmenti-los: bastaria juntar aos autos do processo judicial a concessão original, dada pelo Ministério das Comunicações. Se o documento estivesse em nome de Romulo Maiorana, pronto: poderia tentar caracterizar, além da injúria e difamação, também a calúnia, o crime objetivo da Lei de Imprensa.
Em nenhuma das suas manifestações - ou sobre o artigo ou sobre a agressão que se seguiu - Ronaldo Maiorana se referiu ao assunto. Calou-se por completo. O motivo? Claro: não pode desmentir o que está devidamente documentado. O decreto de concessão do canal da TV Liberal, pelo Ministério das Comunicações, não saiu em nome de Romulo Maiorana. Por quê? Por causa do contrabando.
Ao fazer a afirmativa, o Jornal Pessoal não mentia nem ofendia: estava dizendo a verdade. Uma verdade que tem parentesco com aquela que Unamuno pronunciou com coragem altaneira 70 anos atrás, provocando a fúria dos franquistas, que o mantiveram em prisão domiciliar até sua morte, antecipada por seu estado de espírito final, da mesma maneira como provoquei a sórdida agressão de Ronaldo Maiorana.
Ambos recorreram à força que tinham ou têm. Unamuno foi retirado de sua vida natural e condenado a morrer de dor moral, vendo sua Espanha sucumbir à proclamação da morte sobre a inteligência. Eu me vi sujeitado a ser esmurrado, "engravatado", empurrado e chutado, sem ter o direito de me defender. Depois de agredido, sob a vigilância de um jagunço urbano, pago por todos nós para ser um defensor da sociedade, tive que me manter calmo enquanto meu agressor gritava que ia me matar: se não fosse naquele momento, seria em outro; que nunca mais falaria de sua família; que nunca mais escreveria sobre ele e seus parentes.A voz era do grande inquisidor, do senhor feudal.
Se o agressor não tivesse sido contido, se eu tivesse partido para a reação, se os militares de aluguel me tivessem também agredido se eu reagisse, a história teria tido um desfecho ainda mais trágico do que teve; e eu, provavelmente, não estaria aqui para contá-la e proclamá-la, sob a inspiração luminosa de Unamuno, vencido mas não convencido, derrotado mas não persuadido.
Uma vez restabelecido o primado da razão e da inteligência, Unamuno voltou a ocupar seu verdadeiro lugar na história da humanidade, enquanto seus algozes desapareceram na poeira do tempo. O único lugar que restou ao general Milán Astray foi a de triste coadjuvante na solenidade que perenizou a memória de Unamuno.
Aceitar a intimidação que o grupo Liberal está fazendo sobre mim ou desistir de uma atitude digna é desonrar a tradição humanista, de resistência ao arbítrio, que o sábio espanhol, na sucessão de grandes homens da história, nos legou. Quebrar a resistência é sujeitar-se a fazer parte do rol dos omissos, coniventes, cúmplices do despotismo, do abuso, da tirania.
Também foi memorável a abertura do discurso de Unamuno. Diante de uma platéia ansiosa para saber como reagiria o reitor de Salamanca às agressões do general Astray, ciente dessa expectativa, da importância do que ia dizer, ele começou:
"Todos vós estais pendentes das minhas palavras. Todos me conheceis e sabeis que sou incapaz de me calar. Há momentos em que calar é mentir. Porque o silêncio pode ser tomado como aquiescência".
Depois da agressão que sofri e da perseguição que se formou contra mim no judiciário paraense, em quatro ações propostas pelos irmãos Maiorana e Delta Publicidade, empenhados em criar um tribunal de exceção só para me punir, meu silêncio podia ser interpretado como uma confissão de culpa. Pior do que isso: a confirmação de que jornalismo não é isso que aqui faço, mas uma espécie de ação entre amigos, como a que prevalece na grande imprensa, com suas páginas recheadas de futilidades e inocuidades, transformadas em álbum de família ou em diário pessoal para mediocridades presunçosas e vaidosas, sicrano descrevendo seu amanhecer na cobertura de um prédio bem localizado e fulano reconstituindo a genealogia de um passado obscuro, fútil e destituído de relevância social.
O que me mantém na resistência é a convicção de estar certo. Duvido que um leitor isento encontre, nos pretextos de Ronaldo Maiorana para a agressão e para a ação judicial, qualquer fundamento de razão, sensatez, bom senso ou boa-fé.
Ele agiu por excesso de suscetibilidades, por capricho, por voluntarismo, por presunção de tudo poder e pela certeza de que, além de ser o dono do dinheiro, como observou a jornalista Úrsula Vidal, ser inimputável. Mais até do que estar acima do bem e do mal, da lei dos homens e das convenções sociais: os Maiorana se consideram as fontes do direito, os árbitros sobre a vida e morte dos demais, seus vassalos.
Os Maiorana, em geral, não. Romulo Maiorana teve sete filhos. Apenas um deles viu no artigo apontado como difamante uma ofensa à memória do pai. Os outros seis filhos, todos vivos, todos em idade adulta, todos responsáveis por seus atos e dotados de pleno discernimento, se quedaram mudos.
Quando registrei esse fato, aqui neste jornal, havia na justiça apenas uma ação, a de Ronaldo Maiorana, certamente instruído por seu advogado para tomar a iniciativa, procurando tirar-me, alvo de sua fúria, a condição irretorquível de vítima. Fiz a observação sabendo que ela podia servir ao adversário e se voltar contra mim. O que me interessava era informar a opinião pública, destinatário do meu trabalho. O processo judicial, embora desgastante em todos os sentidos, é secundário para mim.
Meus perseguidores querem exatamente me desvincular do jornalismo e me prender à rocha na qual cravaram minhas algemas, a justiça, como um Prometeu atualizado. Esta edição, por exemplo, podia ser enriquecida pela abordagem de outros assuntos importantes, que começam ou se desdobram neste momento na Amazônia. Mas para poder escrever sobre ele eu tenho que consultar documentos, fazer análises, ouvir fontes, checar, rechecar. Só escrevo quando o tema está amadurecido na minha cabeça. Daí porque este jornal, enfrentando questões polêmicas e ainda quentes, às vezes totalmente novas e freqüentemente interditadas ao interesse público, é muito combatido, mas só raramente desmentido.
Não por coincidência, depois da observação feita no Jornal Pessoal, Romulo Maiorana Júnior, principal executivo das Organizações Romulo Maiorana, ajuizou duas ações, uma cível (de indenização por danos morais e materiais) e uma penal, incluindo a defesa da memória do pai à sua própria defesa. Assim, estaria reforçando a tese inicial de Ronaldo, de que realmente ofendi Romulo Maiorana.
No entanto, na sua primeira iniciativa, uma interpelação judicial proposta em 15 de fevereiro perante a 16ª vara criminal de Belém, dois dias antes da queixa-crime de Ronaldo Maiorana, Rominho não fez qualquer referência à memória do pai. Formulou 14 perguntas, com base no mesmo artigo que Ronaldo disse que ofendeu a memória de Romulo pai e que o teria motivado a me agredir. Nenhuma dessas 14 perguntas de Rominho, no entanto, tocou na questão.
A dedução inevitável desse fato é que o irmão mais velho de Ronaldo e o principal acionista da empresa da qual ambos são donos, que muito mais conviveu, inclusive no ambiente de trabalho, com Romulo Maiorana, não considerou o artigo ofensivo à memória de seu pai.
Se mudou de opinião depois, não foi por convicção, mas por necessidade estratégica, alertado pela observação que fiz a respeito da contradição, na edição 341 do Jornal Pessoal, da 1ª quinzena de março. Entrou na briga para reforçar a posição do irmão em juízo. Senso de oportunidade, não de honra ultrajada.
Essa suspeita se aplica à própria agressão do dia 21, perpetrada não por causa de uma justa indignação, de um impulso súbito, que detonou um ato incontrolado. Conforme comprova o procedimento policial instaurado na Seccional de São Braz, a agressão se deu uma semana depois que o Jornal Pessoal circulou, trazendo a matéria que teria provocado a ira do diretor-editor corporativo de O Liberal. É tempo suficiente para uma raiva eventual ser moderada por alguma reflexão e pela ação dispersiva do próprio tempo.
A agressão foi perpetrada duas horas depois que Ronaldo Maiorana chegou ao restaurante, onde eu já me achava o querelado, com meus amigos (e Ronaldo sabia que iria me encontrar ali: Bernardino Santos noticiou a reunião do "senadinho" em sua coluna social, publicada na edição daquele mesmo dia de O Liberal). O ataque só se consumou quando se juntaram ao agressor os dois integrantes da Polícia Militar, irregularmente transformados em guarda-costas particulares, embora pagos pelo erário. O soco (ou bofetão, na versão supostamente atenuadora do agressor) foi dado antes que eu pudesse me levantar para me defender. Uma vez consumada a "surra", Ronaldo fugiu, com a cobertura de seus capangas, para evitar o flagrante.
Diante dessas circunstâncias, cabe a pergunta: foi ato impensado, irrefletido, ou a agressão foi premeditada? A resposta fica com o leitor. A minha é clara: o advogado, jornalista, empresário, presidente do diretório regional do Partido Liberal, presidente da Comissão em Defesa a [sic] Liberdade de Imprensa da OAB/Pará, diretor-editor-corporativo de O Liberal - e, mais recentemente, também professor de Ciência Política da Fibra (Faculdade Integrada Brasil Amazônia), uma das muitas instituições particulares de ensino superior da terra - Ronaldo Maiorana planejou o ataque para me calar.
Apesar da gravidade do acontecimento e da argumentação de Ronaldo, de que agira sob justa indignação, reagindo ao conteúdo supostamente ofensivo do artigo, nenhum dos veículos de comunicação das Organizações Romulo Maiorana, inclusive o jornal O Liberal, fez a menor referência ao episódio, embora essa empresa diga que controla, quase como monopólio, a informação jornalística no Pará, na condição de afiliada da Rede Globo de Televisão e detentora de 85% do mercado de jornal impresso.
Se a família Maiorana foi ultrajada, se o artigo do Jornal Pessoal continha inverdades a respeito da família e de seus negócios, por que, na defesa de sua honra, Ronaldo não esclareceu a opinião pública sobre os fatos? Com o formidável poder de difusão que tem, reporia o que diz ser a verdade.
Até agora, a única referência à agressão nos veículos da corporação continua a ser o artigo escrito de Nova York por Elio Gaspari, que O Liberal se viu obrigado a reproduzir, no dia 6 de fevereiro, para não incorrer nas penas do contrato que assinou com a Agência Globo, distribuidora da coluna de Gaspari para vários jornais do país. A referência de Gaspari foi altamente favorável a mim e desabonadora ao meu agressor.
Reproduzo o trecho principal do artigo, que ainda não havia saído neste jornal, para reavivar a memória do leitor e registrar o fato nos anais desta publicação. De Nova York, Gaspari informou aos desavisados:
"O nome de Lúcio Flávio Pinto acaba de ser encaminhado à comissão julgadora do prêmio Maria Moors Cabot, da Universidade de Columbia. Trata-se do mais conhecido prêmio do jornalismo interamericano.
Mais: por sugestão do cientista político Biorn Maybury-Lewis (ex-professor da Universidade Federal do Pará), ele foi convidado para uma passagem pela Universidade de Harvard. Lá, contaria suas experiências profissionais. A visita será patrocinada pelo Centro David Rockefeller para Estudos Latino-Americanos (onde o signatário passa seu semestre), Lúcio Flávio informou que só poderá viajar aos Estados Unidos.
Para que as pessoas interessadas em azucrinar o jornalista saibam a intensidade da frente fria que têm pela frente, foi-lhe dito que poderá vir quando quiser, inclusive no dia em que achar que sua segurança está ameaçada".
Pergunta-se: a Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, uma das mais importantes do mundo, concederia essa deferência a um ofensor da honra alheia, a um jornalista panfletário, da imprensa marrom? Ofereceria todas essas excepcionais vantagens exatamente depois que escrevi o artigo usado por Ronaldo como pretexto para me agredir, ofendendo o decoro público, cometendo crimes e ultrajando o poder tutelar da justiça, a única autorizada a arbitrar as diferenças entre os cidadãos, conforme a lei e não segundo o muque de qualquer um, por mais poderoso que seja e assim se imagine?
As ações judiciais que agora se sucedem no fórum de Belém, promovidas por ele, seu irmão e Delta Publicidade (mas, pelo menos até agora, sem o endosso de nenhuma das cinco irmãs, nem da mãe de todos eles, Déa, legatária do marido), visam, principalmente, dar legitimidade ao ato de barbárie do agressivo Maiorana. E, ao mesmo tempo, prosseguir na intimidação do jornalista que não se curva aos seus caprichos e interesses.
Se a justiça aceitar tais ações, em tal contexto, começará por negar vigência a um dos fundamentos do estado democrático de direito, que é o monopólio estatal do direito de punir e de exigir compulsoriamente a prática de alguma conduta. Ao me agredir, Ronaldo Maiorana infringiu o artigo 345 do Código Penal, cometendo o crime de exercício arbitrário das próprias razões. Isto é: fez justiça com as próprias mãos, ignorando a justiça pública, o monopólio estatal do arbitramento das diferenças, o contencioso legal dos litígios.
É paradoxal, daquele paradoxo fustigado por Unamuno, que agora vá à justiça na busca de um direito que perdeu. Não só perdeu como não quis exercer, desprezou, violou. Paradoxo ainda mais negativo é o recebimento de pedido tão torpe, leviano, irresponsável.
Numa das ações, Ronaldo, Romulo Jr. e Delta dizem que cometi os crimes de calúnia e difamação quando disse que fui espancado pelo diretor do grupo Liberal. Adverte-me de que há uma "grande diferença" entre espancar, que causa lesões corporais graves, e agredir, que provoca lesões corporais leves. Devo ser punido por não saber a diferença. Da próxima vez, tenho que inspirar minhas palavras de jornalista, dirigidas a um público não selecionado, no Código Penal e não no Aurélio.
O mais consultado e famoso dicionário brasileiro, fonte principal do léxico em uso no país, declara que agredir é: "Bater em; surrar, espancar". Espancar, para Aurélio Buarque de Hollanda & equipe, é sinônimo de agredir. Para ele, para o leitor, para mim, quando em convivência aberta, em sociedade. Não tendo o que argüir em favor do cliente, o patrono de Ronaldo recorre ao bizarro, mesmo com adereços de legalidade.
O fato original da história é a agressão, seguida de espancamento. Este é o fato natural. Minha integridade física foi ofendida por murro (ou bofete), empurrão, pescoção, chutão e outros superlativos da animalidade. Ferido, arranhado, com a camisa toda desabotoada, fui à polícia registrar queixa. Pedi ao delegado que me atendeu para ir atrás do agressor recuperar o flagrante, sagazmente tangenciado. O delegado respondeu que, tecnicamente, não cabia mais. Pensei: e se eu tivesse sido vítima de roubo ou furto? Bom, nesse caso cabia a providência, observou o delegado. Isso quer dizer que a lei penal tutela mais o patrimônio do que a pessoa?, indaguei. Meio constrangido, o policial teve que admitir: é verdade.
Pois é também verdade que o agressor pede minha punição pelo crime de não ter usado a expressão juridicamente correta para a injúria que sofri. Não importa que, antes de aplicar ao fato o conceito de espancamento, e não o de agressão, para defini-lo com a justeza de um causídico a se dirigir a um magistrado, eu fui vítima de um ataque pelas costas, sem o direito de defesa, recebi vários golpes físicos do agressor, vi-me constrangido pela ameaça do policial-capanga e tive que ouvir, de corpo presente, ferozes ameaças de morte, colocando em risco minha vida e afetando a vida de todas as pessoas que dependem diretamente de mim, mulher e filhos, sem falar nos outros parentes a mim vinculados.
À maneira de Lewis Carrol, na versão infantil, ou de Franz Kafka, no enredo adulto, estou ameaçado de ser condenado e apenado, além de ter que pagar indenização por danos morais e materiais que cometi contra a família imperial do Pará, pelo crime de não aceitar os socos, pontapés, "gravatas" e chutes com os quais Ronaldo Maiorana me honrou, com a participação coadjuvante de um integrante da Polícia Militar disfarçado de segurança particular, nesse espetáculo, para o qual o general Milán e seus camisas azuis contribuiriam com o coro de "viva a morte", "abaixo a inteligência".
Espero que haja, neste querido Pará, mais pessoas dispostas a tornar sua esta causa e a não aceitar que a força do poder e do dinheiro prevaleça sobre a força da inteligência, a única com a qual conto. Se têm razão na sua demanda, os Maiorana precisam persuadir e convencer a opinião pública de que estão certos. Argumentando, debatendo, respondendo. Não podem prevalecer à base do grito, da pressão, da intimidação, do "faço porque posso e está acabado". Podem até ganhar, como os fascistas espanhóis ganharam. Mas não levarão a concordância, a aprovação do povo. Não convencerão.
Apenas dois dos participantes da solenidade de 12 de outubro de 1936 quebraram o torpor do medo para amparar Unamuno e conduzi-lo, com dignidade e altivez, para fora dos limites sagrados da Universidade de Salamanca, conspurcados pelo anauê fascista. Como a situação nem de longe guarda proporção com a grandeza do drama espanhol de 70 anos atrás, ainda confio que os paraenses estejam dispostos a não deixar que o poder do dinheiro derrote o poder da inteligência, conforme a definição do embate feito por Úrsula Vidal.
Ela foi única: depois de repudiar a violência que testemunhou no restaurante e se solidarizar com o agredido, saiu rapidamente dali para escrever um artigo, registrando sua indignação e assumindo as conseqüências do seu ato. O artigo foi publicado no Diário do Pará, o único a dar cobertura ao fato (e, por isso mesmo, também incluído em duas ações dos Maiorana). Quase todos os outros, que abraçaram e cumprimentaram o agredido no salão do restaurante, pediram para não ser identificados, não quiseram servir de testemunhas, escaparam às pressas ou trataram de apagar da memória as lembranças tristes. Uns disseram, com todas as letras: tenho medo.
Cometeram a mentira do silêncio, que, no dizer de Unamuno, é crime de consentimento com o crime precedente. É esse um passo muito rápido para a irracionalidade, a brutalidade, a ignorância e a morte, na seqüência que o general Milán impôs ao filósofo Unamuno. Deus permita, com a ajuda dos homens de coragem e dignidade, que aqui não seja também assim.
O grupo Liberal e seus aderentes e aliados querem que seja assim. A direção da OAB do Pará quer que seja assim, tanto que, em sessão fechada, como se num tribunal especial, num desses gulags descritos por Solzhenitsin ou Arthur London, o conselho seccional da Ordem, por unanimidade, decidiu manter Ronaldo Maiorana no conselho de liberdade de imprensa, sem consideração pelos fundamentados argumentos de 59 advogados associados à Ordem. Eles recorreram da decisão para o conselho federal. Espera-se uma atitude diferente vinda de lá. Talvez assim a verdade deixe de ser uma exilada no Pará, agredida e espancada.
Causa justa
Esta edição do Jornal Pessoal foi sensivelmente prejudicada pela perseguição judicial desencadeada contra mim pelos donos do grupo Liberal. Digo perseguição sem medo de errar e sem o receio de cometer uma impropriedade semântica ou incorrer numa falha conceitual. Meus poderosos adversários, mesmo sendo personalidades públicas, detestam prestar contas ao público. Ao invés de responder a minhas críticas através do exercício do direito de resposta, ou de artigos em seus próprios jornais, reagem com ações judiciais.
É um direito que a lei lhes confere, mas não é um procedimento legítimo. A propaganda do grupo Liberal apregoa que quem lê o jornal, acredita. Se isso é verdade, por que os Maiorana não repõem a verdade para os eventuais leitores (não são muitos nem tão poucos) que lêem tanto O Liberal e o Amazônia Jornal quanto o Jornal Pessoal? Se quem lê O Liberal acredita, não acreditará no que aqui se tem dito, há muito tempo, sobre o abuso de poder da corporação dos Maiorana.
A causa de pedir dos meus algozes é destituída de bom senso, de razoabilidade e de fundamento legítimo, sejam os Maiorana como a C. R. Almeida. Não tendo tratado aqui da dimensão privada do que fazem, me cingi ao que interessa à opinião pública. São temas de alta relevância para o Estado. Mesmo perseguido, mesmo intimidado, mesmo agredido, não deixei nunca de tratar dessas questões. São minha razão de ser como jornalista. Sou jornalista, ponto final. Minha condição profissional não vem acompanhada de adjetivos supérfluos. Não sou jornalista investigativo, combativo, independente ou ambientalista. Sou, apenas e tão definitivamente, jornalista.
Não sei fazer jornalismo que não seja o da informação exata, empenhado em chegar à mais íntima aproximação com a verdade. Posso acertar na mosca. Posso errar no ponto de chegada. Mas meu ponto de partida é sempre o mesmo: onde estão os fatos? Quem os causou? Por que se constituíram? Onde estão suas origens? Quais as suas conseqüências?
Serei indiciado, serei condenado, serei preso, serei agredido (serei morto? Ronaldo Maiorana foi o último que me ameaçou com essa possibilidade, diante de 150 pessoas, aos berros), mas não deixarei de fazer a única coisa que aprendi, sem dúvida, a fazer com competência. Digo competência sem empáfia ou vaidade. Qualquer pessoa honesta, aplicada, séria e trabalhadora aprenderia o que aprendi se optasse pelo jornalismo. Por isso o defino substantivamente: jornalismo. É tão fácil praticá-lo quanto ser honesto. Uma vez, perguntaram a Millôr Fernandes: é difícil ser honesto? O sábio do Méier respondeu na bucha: Não, é facílimo. Não tem concorrência...
Certamente eu já teria encerrado a carreira deste jornalzinho se pudesse ler o que ele publica em outros jornais. Quero tempo para minhas leituras, pesquisas, investigações e prazeres, pequenos, simples, pobres. Não quero, como Prometeu acorrentado a uma rocha ainda mais dura do que a da mitologia, seguir o roteiro imposto pelos meus perseguidores. É uma via crucis que começa pela exigência de pagamento antecipado de custas proibitivas para o comum dos mortais, quando a demanda é mais onerosa (quando não é, ele vai bater à porta dos juizados especiais congestionados), prossegue com o acompanhamento dos incidentes processuais e termina quando a causa não tem uma apreciação objetiva, técnica, imparcial, sem a influência do poder que impressiona.
Quando jovem, li A Confissão, do tcheco Arthur London. Foi logo depois de ter acesso à obra de um conterrâneo dele, Franz Kafka. Kafka prenunciou o nazismo, se amarra-se a uma localização sua inspiração universal, sem fronteiras (inclusive na mente). Também exorcizou o espírito burocrático, o estado de espírito (sem falar na sua sistemática) mais antijornalístico que há. London mostrou o que se estabeleceu depois do nazismo, como sua sucessão totalitária com outra retórica, de salvacionismo apregoado com outras mensagens, mas chegando aos mesmos fins. London foi uma das milhões de vítimas de Josef Stálin, o sacerdote do socialismo real, da utopia pervertida em morticínio.
Nestes mais de 12 anos de submissão a sucessivos processos judiciais, desencadeados pelos que não gostam do que aqui se publica, mas não querem que o necessário debate sobre o que aqui se publica chegue ao distinto público (embora dele tirem seu ganha-pão-de-ló), me senti na pele de Joseph K., como arquétipo da vítima da irracionalidade, e de Arthur London, como sua expressão real. Não é uma condição que se deseje nem para o inimigo.
Sinto-me vítima de um processo político, não de um rito que se estabelece com base nas garantias do devido processo legal. O preço que se paga numa perseguição movida por poderosos é muito alto, quando se é a vítima. Mas o preço maior é debitado à conta de uma sociedade que se omite em relação às causas desse mal, privada de receber as informações vitais, exposta aos nexos da manipulação, a se tornar o boneco do ventríloquo, o boneco de um teatro mambembe, de uma farsa.
Se assim tiver que ser, que seja. Tenho quitado as promissórias dessa causa. O preço, excessivo, podia ser atenuado pela participação coletiva, pela consciência coletiva, pela ação de todos. Mas se a solidão é inevitável, ainda assim, enquanto este jornal fizer pulsar sua resistência, em seu pórtico continuará fincada uma placa de advertência, inspirada - de forma invertida - na entrada do inferno de Dante Alighieri:
"Deixai aqui vossa força, vós que entrais".
Ou, como preferiu o Barão de Itararé, quando os belicosos adversários invadiram a redação de A Manha, um glorioso antepassado mais nobre deste Jornal Pessoal, o espancaram e depredaram tudo:
- Entre sem bater.
O que nem o humor radical de Aporelly podia prever é que, tempos depois, um novo agressor, depois de bater, ainda o chame de criminoso porque não soube, ao apurar seus ferimentos e lesões, tipificá-los penalmente com correção. Se fosse o redator solitário deste jornal e não de A Manha, o Barão de Itararé ainda seria preso por não saber apanhar dentro da lei.
Quem estiver impressionado com o mote que vá atrás de Franz Kafka ou de Arthur London. Eles poderão servir de inspiração ao que falta na terra: o sentimento de indignação. Não em abstrato, mas pelo que, segundo São Paulo, dignifica a vida: uma causa justa.
(Texto publicado originalmente no Jornal Pessoal nº 343, da 1ª quinzena de abril de 2005)
*Lúcio Flávio Pinto - é um dos mais prestigiados jornalistas em atividade na Amazônia brasileira. Ele já ganhou quatro prêmios Esso de Jornalismo e outras premiações internacionais. Ao longo de sua carreira trabalhou na revista Veja e no jornal O Estado de São Paulo, onde atuou por dezessete anos. O paraense Lúcio Flávio Pinto mantém o Jornal Pessoal. Perde dinheiro, ganha inimigos e coleciona ameaças ao tratar dos assuntos da Amazônia e da Região Norte do Brasil.