*Lúcio Flávio Pinto
No dia 31 de janeiro comuniquei à assessoria de imprensa da Unesco, o órgão da ONU para educação, ciência e cultura, a agressão que havia sofrido, cometida pelo diretor-editor corporativo do jornal O Liberal, Ronaldo Maiorana. Imaginei que o caso pudesse ser do interesse do seminário que a Unesco promoveria, em conjunto com a ANJ (Associação Nacional de Jornais), duas semanas depois, em São Paulo, como parte da instalação da Rede em Defesa da Liberdade de Imprensa, de cujo rol de violações não constava nenhum dos meus casos de perseguição e agressão.
Seguiu-se um longo silêncio, que meus contatos posteriores não conseguiram quebrar. Somente no último dia 7 recebi um e-mail de Ana Lúcia Guimarães, assessora de imprensa da Unesco, datado do dia 4, nos seguintes termos:
"Prezado Sr. Lúcio Flávio,
Foi com pesar que a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) recebeu a notícia de que houve uma agressão física lamentável entre dois profissionais respeitados no estado do Pará.
Embora seja uma situação grave, pois condenamos qualquer tipo de violência, informo que a UNESCO não possui elementos nem condições de se posicionar com relação ao caso.
A UNESCO apóia a Rede em Defesa da Liberdade de Imprensa, recém-criada pela Associação Nacional de Jornais (ANJ), a quem cabe o recebimento e a análise de supostos casos de atentado à liberdade de imprensa. Com relação ao II Encontro Regional sobre Liberdade de Imprensa, que acontecerá no dia 7 de março, em Fortaleza, temos conhecimento de que o seu caso será abordado por jornalistas que participarão do evento.
A UNESCO defende a liberdade de expressão, que é um direito fundamental garantido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem. Um ataque à liberdade de expressão é intolerável à democracia e ao estado de direito".
Respondi, no mesmo dia, a esse ofício:
"Agradeço por sua manifestação, datada do dia 4 e somente hoje por mim recebida, relativa à minha manifestação do dia 31 de janeiro.
Devo lhe dizer que o caso não é uma "lamentável agressão entre dois respeitáveis profissionais". Eu fui agredido. O outro profissional me agrediu, covardemente, com a ajuda de dois capangas, ambos da ativa da Polícia Militar do Estado, irregularmente fora de suas funções e de seus quartéis.
A agressão se deu em razão de um artigo jornalístico que eu escrevi. O agressor se disse ofendido pelo artigo. Ao invés de recorrer à justiça ou exercer o direito de resposta, achou que deveria fazer justiça com as próprias mãos. Trata-se, portanto, de um atentado à liberdade de expressão.
Se tal situação não é capaz de interessar à Unesco, nem diga respeito à rede por ela apoiada, peço desculpas por havê-la incomodado".
Big Brother Liberal
As Organizações Romulo Maiorana prepararam uma grande operação jornalística para aquele dia. Ronaldo Batista Maiorana, diretor-editor corporativo da empresa, iria depor na Seccional Urbana de São Braz sobre a agressão que praticara contra mim dias antes. Falava-se na imprensa, localmente quase reduzida ao jornal Diário do Pará e à televisão RBA, de propriedade do deputado federal Jader Barbalho, que iria haver acareação entre o agressor e o agredido. Não ia haver, na verdade: cada um dos personagens deporia isoladamente. Não haveria contato entre ambos, nem antes e nem depois dos respectivos depoimentos. Mas houve muita tensão nos dias anteriores e haveria tensão na hora.
Por isso, o grupo Liberal montou um esquema para fazer uma grande cobertura naquele dia. Mobilizou duas equipes da TV Liberal, duas do jornal O Liberal, mais uma equipe do Amazônia Jornal e um repórter da Rádio Liberal. No total, 14 jornalistas, sem contar dois advogados e acompanhantes nos dois carros que formaram a comitiva de Ronaldo Maiorana quando ele desceu de um dos veículos, no subsolo da seccional da polícia.
A organização da cobertura começou na véspera, com reuniões entre os chefes das redações e a direção, orientada por assessores. No início da tarde do dia seguinte as providências práticas começaram. Uma equipe da TV foi colocada do lado de fora da sede da seccional, encarregada de documentar a chegada dos protagonistas, enquanto outra permanecia no interior do prédio, para acompanhar o ingresso na sala dos depoimentos. O cinegrafista Gouveia Jr. coordenaria o trabalho das equipes, como se estivesse fazendo a supervisão de uma transmissão ao vivo, conforme o padrão da televisão.
Quando entrei, sozinho, aliás, cumprimentei Gouveia. Em 1975 eu abri uma página do meu semanário alternativo, o Bandeira 3 (impresso nas oficinas de O Liberal, que havia adotado a impressão inovadora do off-set, sem ainda saber manejá-la adequadamente), para protestar contra o espancamento brutal contra ele praticado por um investigador da polícia, que o levou a desmaiar.
O jornal O Liberal, no qual ele trabalhava como jovem fotógrafo, nada publicou. Também fiquei ao lado dele quando a Polícia Militar investiu contra jornalistas na cobertura de um ato oficial no Teatro da Paz, com a participação do então presidente da república, general João Figueiredo.
Protestei ainda junto ao governador Hélio Gueiros, diante de testemunhas, quando Gouveinha recebeu uma rasteira de um coronel da PM e desabou com a câmara colada ao rosto, durante a retirada à força do então deputado estadual (e futuro prefeito de Belém) Edmilson Rodrigues do gabinete do governador. O Liberal, mais uma vez, nada disse.
Pensei que Gouveia Jr. estava ali para trabalhar, mas logo observei que lhe faltava o complemento necessário: a filmadora. De estranhar seria também o comportamento das equipes de televisão diante da estrepitosa chegada de Ronaldo Maiorana, alguns minutos depois: os únicos repórteres que lhe fizeram perguntas foram os da TV RBA e Record. Os telejornalistas da casa nada perguntaram. Mas Maiorana nada declarou aos que tentaram arrancar-lhe alguma palavra. Nem na chegada nem na saída, já então diante também de uma representante do SBT. Ninguém insistiu nem pressionou por uma declaração. A situação, inusitada, criou constrangimentos.
Apenas eu falei - e tudo que achava que devia falar, embora desconfiasse que o resultado das anotações iria parar nas mãos dos advogados do meu algoz, à cata de algo que pudesse ser usado contra mim na fase seguinte desta guerra, a judicial. Mesmo quando os repórteres deixaram de fazer anotações, eu não podia garantir que algum equipamento oculto não estivesse fazendo o registro. Eu estava sendo monitorado, disso não havia dúvida.
Parecia que o mutismo absoluto mantido pela maior corporação de comunicações do Norte do país sobre fato provocado por um de seus donos seria finalmente quebrado. Ledo engano, porém: nenhuma linha, nenhum som, nenhuma imagem saiu nos jornais, na rádio e na televisão dos Maiorana. Talvez pela primeira vez na história do jornalismo mundial, todo material produzido por jornalistas, no desempenho de sua profissão, em uma atividade externa, teve por platéia apenas os donos da empresa e seus seletos convidados, reunidos em gabinete fechado.
Nada vazou para o distinto público, a razão de ser de empresas jornalistas, sob a forma de opinião pública. O jornalismo, ao menos o do reino da quitanda, flui conforme a vontade do quitandeiro-chefe. O rei da quitanda.
Que eles pensem e ajam assim, choca, é verdade, mas não surpreende. Veiculam ou vetam, reproduzem ou manipulam conforme seus interesses pessoais e comerciais, achando que podem tudo numa terra à sua mercê. Mas e a dúzia de profissionais envolvidos, desrespeitados, usados: nenhum deles teve crise de consciência? Nenhum se sentiu no dever de denunciar - por qualquer meio que seja - o ultraje à dignidade e à decência, ao compromisso com a sociedade?
*Lúcio Flávio Pinto - é um dos mais prestigiados jornalistas em atividade na Amazônia brasileira. Ele já ganhou quatro prêmios Esso de Jornalismo e outras premiações internacionais. Ao longo de sua carreira trabalhou na revista Veja e no jornal O Estado de São Paulo, onde atuou por dezessete anos. O paraense Lúcio Flávio Pinto mantém o Jornal Pessoal. Perde dinheiro, ganha inimigos e coleciona ameaças ao tratar dos assuntos da Amazônia e da Região Norte do Brasil.